Direito à Memória: Lilia Schwarcz

Neste ano de 2024, a primeira constituição brasileira faz 200 anos. O texto de lei passou para a história com o título de “A Outorgada”, pois foi imposto pelo Imperador Pedro I que, em moto contínuo, fechou a assembleia e impediu a atuação dos políticos da oposição.  

A Constituição foi também considerada “outorgada” já que, à exemplo do que vinha ocorrendo em outras esferas, ela passou por cima da população que lutou pela emancipação política de 1822.  

Brasileiros e brasileiras foram, então, socializados por uma história de matriz colonial, branca, masculina, europeia e, por demais, vinculada às elites locais. Nela, não havia basicamente espaços para boa parte da população nacional – constituída por negros, indígenas e mulheres, ainda que, muitos deles, tenham pegado em armas para defender o país.  Por outro lado, a própria história da arte nacional restou marcada por esse mesmo tipo de discurso e de representação dominantes.  

Essa exposição pretende, pois, homenagear artistas durante muito tempo invisibilizados e trazer para uma casa modernista icônica, projetada e decorada pelo arquiteto e designer polonês, radicado no Brasil, Jorge Zalszupin, uma arte afro-brasileira e indígena, contando também com grande presença feminina.  A exposição traz, igualmente, referências e citações às obras e aos móveis originalmente expostos no local.  

Zalszupin viveu durante 60 anos neste endereço e saturou o espaço com objetos de seu gosto e predileção. O resultado são salas que acolhem, quartos e banheiros com personalidades próprias, uma copa que respira convívio e um jardim que invade a casa, sendo difícil separar o dentro do fora: o externo do interno.  

A cidade cresceu no entorno da Casa. Logo em frente a ela, compartilhando da mesma Praça, fica a Igreja São José, com os seus fiéis lotando as ruas nos dias festivos. Nos arredores, estão as movimentadas Avenida Faria Lima e a Alameda Gabriel Monteiro da Silva. Vias urbanas em que se passa rápido, nessa São Paulo que não para.  

Já a Casa, que se esconde na tímida e recatada beleza de seus detalhes, quase que se perde nesse bairro de mansões imponentesRestou como que perdida ou resguardada pelo tempo. Projetada em 1960, ela apresenta elementos do modernismo brasileiro, combinados com as influências que o arquiteto trouxe da Europa, especialmente da Dinamarca.  

Com a morte do artista, em 2020, a estrutura da Casa continuou basicamente intacta. Nela, vemos se desenvolver uma conversa equilibrada entre o piso de cerâmica rústica e a parede rugosa; uma superfície de pedra dialoga com a escada vazada por degraus de jacarandá; vidros coloridos nas janelas disputam espaço com o concreto frio; um teto de madeira faz o monumental parecer aconchegante. 

Inspirada por esse ambiente modernista, proponho incluir “outros modernismos”, de matriz afro-brasileira e indígena, para decorar provisoriamente a Casa. Nesta espécie de celebração, o áspero do concreto disputará espaços com o traçado forte da arte dos orixás; as pedras com as esculturas de cerâmica, barro ou bronze; as formas que descrevem uma reta estarão em interlocução com os motivos das artes indígenas e de seus encantados. 

O objetivo é dispor em diálogo a tradição e o contemporâneo, afastando classificações próprias de nosso cânone artístico ainda muito eurocêntrico, que jogou para o lugar do “artesanato” ou da “arte popular e naïve” toda uma produção que explode na sua brasilidade desafiando o conceito mais estabilizado de modernismo e modernidade.  

Há também uma certa metalinguagem presente na exposição, que busca atualizar a decoração original, repleta de elementos cheios de vida – dentre quadros, móveis, esculturas, gaiolas, ex-votos tapetes, livros –, imiscuídos na própria intimidade da família.  

Direito à memória busca, assim, traduzir para esse espaço privilegiado, verdadeira joia do modernismo brasileiro, uma história que não cessa de acontecer, mas que, durante tanto tempo, não possuía lugar. Impunha-se no silêncio. Não se trata, portanto, de incluir esses artistas no modernismo, mas de abrir a porta para outros modernismos, dissidentes.    

Esta exposição visa “reparar” – no sentido de observar e retomar direitos –, mas também “ocupar”, sublinhando o sentido de tomada cultural e simbólica. São muitas as histórias e as maneiras de reivindicar direitos.

 

LILIA MORITZ SCHWARCZ

 

agende sua visita